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No Brasil, a poesia transformou-se num imenso vale de
lágrimas. É uma terra de poetas e pouca poesia. A produção poética atual no
Brasil chega a ser deplorável, sem generalizar. Repetindo: sem generalizar. Mas
acredito que esteja tudo correto, num país onde as livrarias praticamente não
existem mais. Tem-se que se acrescentar, também, a mediocridade dos suplementos
culturais que fabricam um grande “poeta” do dia para noite. “Poetas” que
desaparecem da noite para o dia. A fragilidade dos poemas escritos em terras
brasileiras atualmente chega a assustar. E essa angústia atingiu também a
música popular brasileira, algo que não tem classificação hoje, tal o baixo
nível. Poucos são os poetas que, verdadeiramente, levam a poesia a sério. As
cenas chegam a ser ridículas e desanimadoras. Peço desculpas ao leitor para
particularizar uma situação lastimável: no que me diz respeito, fugi para
Portugal, terra de meus pais, e me dediquei à poesia portuguesa por 15 anos, o
que me deu um lugar de respeito neste país sem rumo.
Essa introdução serve para falar do poeta português Valter
Hugo Mãe, do poeta, não do prosador, autor de romances bem aclamados pela
crítica. Crítica? E até nesses romances
é possível encontrar essa poesia sofrível que, ao que tudo indica, reina
soberana em quase todo lugar do planeta. Pelo menos no Brasil, onde vivo
perdido a ouvir a mesma palavras de sempre. Refiro-me à poesia reunida de
Valter Hugo Mãe, “Publicação da mortalidade” (Assírio & Alvim), um livro
que revela que a poesia nem sempre é levada a sério como deveria ser em
qualquer cultura civilizada. Atualmente,
poesia e poeta são coisas raras. É preciso aproveitar o momento de alguma
descoberta da poesia consistente, escrita por poetas que conhecem seu ofício.
Mas são poucos.
Valter Hugo Mãe costuma dizer que a poesia é um sentimento.
Esse é o significado, sem mais nem menos. No caso do Brasil, colocar sentimento
num poema é um crime. Segue-se a cartilha de João Cabral de Melo Neto, para
quem o poema devia ser como uma pedra de gelo. Faz-se um poema colocando um
tijolinho sobre outro tijolinho. Nada de emoção. Poemas feitos com fita métrica,
compasso, fio de prumo e outras coisas que o valham. Endeusado no Brasil, com
seus poemas construídos como se fosse um edifício. Que vá para o inferno, mais
os que o seguem, essa coisa chamada concretismo, que nem sei se existe ainda.
Quem não se beira da poesia – diz Valter Hugo Mãe – não
sente por completo, como se nunca experimentasse a alegria ou a tristeza, a
ansiedade ou a frustração. Está correto. Mais do que correto. É necessário
saber, no entanto, se ele está falando sério. Em entrevista a Severino
Francisco, do jornal Correio Braziliense, de Brasília, VHM afirmou que a poesia
“serve para que nos completemos no conhecimento de nós mesmos e do mundo”. Para
ele, a poesia é um instrumento de revelação: “Sem o poder da palavra poética
estamos algo diminutos na construção de nosso pensamento, de nossa identidade.
Sigo convencido de que é na poesia que reside a maior força de que sou capaz”. Será?
Será mesmo? Seja como for, quem dirá o contrário? Ninguém que de fato conheça
poesia, que saiba o que é poesia, o que a poesia representa na vida do homem
num mundo destroçado e invertido em todos seus valores.
se o vento é a ignição das árvores venha o
temporal elas ateadas sobre
as nossas cabeças desmembradas
da terra como voadores desajeitados meu pai
já conheço o vão da tua fome peço-te
faz de mim uma colher divina
A poesia não é e nunca poderá ser uma aventura, como ocorre
no Brasil atualmente, sem generalizar. Repetindo: sem generalizar. E parece não
ser apenas no Brasil, em Portugal também. E tudo devidamente amparado por um
jornalismo cultural que parece não ter compromisso com nada. Não pode ser uma
aventura porque a poesia exige sabedoria e esse sentir as coisas ao redor, com
a observação necessária, que nem todos possuem. E não possuem porque
simplesmente não são poetas e ponto final. Valter Hugo diz num de seus poemas:
“pela fortuna do verso/ sei que morte inteira/ passarei pelo buraco da agulha/
a biblioteca”. Vejam trecho do “poema político incorreto”:
as feministas entraram no parlamento
e depositaram as mamas nas bancadas
depois em silêncio nervoso
saíram marchando os homens ávidos
à força de serem ministros
levaram o dobro ou o triplo para casa
as feministas lamentaram o fato
disseram que contavam com um
contra-ataque mais inteligente
Diz tudo. Ou nada. Um retrato do mundo em que todos estamos
metidos. Na poesia do dia a dia. Mergulhados até o pescoço. E não há
escapatória, em tempos do “politicamente correto”. Isso fica com os discípulos
de João Cabral. Ele se dá bem com sua régua e compasso a fazer seu poema de
letras contadas. E discípulos desavisados estão até mesmo em Portugal, que
dizem ter certamente a poesia mais rica do mundo.
Certa vez, o Caderno de Literatura Brasileira, do Instituto
Moreira Salles, de São Paulo, dedicou o número a João Cabral. E mostraram uma
foto em página dupla de João Cabral diante de um canavial. Ele então disse: “Um
mar verde”. Pois é, essa frase banal “um mar verde” pareceu uma grande lição de
poesia mas, no fundo, representava uma palavra inexpressiva e até
insignificante. “Um mar verde”. É assim que funciona aqui o jornalismo
cultural, enaltecendo bobagens que nada dizem em nome não se sabe do quê. No
fundo, uma grande estupidez. A ordem é enaltecer coisas assim. Mas nem tudo é
assim, sempre será preciso evitar a generalização. Por honestidade.
Para Valter Hugo Mãe, a poesia pode ser a salvação. Todos os
versos são a memória dessa salvação: “Não sei se vou estar a serviço da poesia
ou da prosa. Sei que não sei servir melhor do que a literatura e as palavras”,
diz ele. Confessa que sua poesia influenciou sua prosa. Observa que sempre quis
ser poeta e hoje é um poeta envolvido pela prosa. Isso é verdadeiro, posto que
em muitos trechos de seus romances é possível encontrar algum momento poético:
“Minha identidade literária vem da poesia”, como afirma. No entanto, tudo leva
a crer que o discurso uma coisa e a poesia produzida é outra.
A afirmação leva a um instante qualquer na vida de VHM, se é
que assim pode ser devidamente anotado em forma de poema. Isso identifica o
autor. Ele conversa consigo mesmo, mas nem tudo é possível. Mostra seu
pensamento, o que sente, o que existe e o que deixar de existir. Os instantes
são recolhidos, essas palavras invisíveis que fazem uma fotografia. Um outro
momento diz assim: “...reajo ao pescoço
que/ iça o sol logo a/ voz matando a fome do / silêncio sou colhido depois/ de
ferver em sono brando quando/ seguro o fôlego para manso/ acordar intacto/”.
E assim caminha a poesia do instante passada para o papel e,
nesse espaço, entra certa leviandade poética. A amargura de estar num mundo
hostil em quase tudo: “...uso o coração para os alfinetes subo/ as beiras das
calças coso os botões alinhavo/ camisas a cortar amariquei também os/ braços
com tatuagens do teu/ nome vou esquecer-te rapidamente porque o/ amor inventa o
ódio/”.
VHM não deixa de usar a ironia diante do que vê. Em alguns
casos, só mesmo a ironia para enfrentar tantas coisas destruídas. Ironia
inclusive para ele mesmo se situar diante do que escreve em forma de poema. Não
há nada a fazer. Muitos instantes revelam isso. Nada a fazer, senão que tudo
siga como for possível seguir. “...fui doente de um poema/ e músico/ toquei
silêncio enquanto/ kathleen ferrier cantou/”.
Valter Hugo Mãe poderia vir para o Brasil com sua poesia
porque se daria bem. Convém lembrar que me refiro à poesia, embora a prosa
também seja bastante questionável. É um desses casos em que o “engrandecimento”
de uma obra razoável ganha ares de esplendores porque em reinos da mediocridade
tudo pode acontecer.
Um exemplo dessa inutilidade poética, a começar pelo título,
é o poema “gordo e careca”. Como se pode notar, duas palavras magníficas que de
cara revelam o que tal poeta quer transmitir nestes tempos de muitas mentiras
literárias. Para utilizar um termo português, o poema segue em disparates que
funcionam como algoz de seu leitor desavisado, com um pedantismo fácil de
encontrar no Brasil, mas não em Portugal. No entanto, Portugal também dispõe
desses disparates protegidos por uma mídia que nada deixa a desejar à mídia
cultural brasileira.
Este é o caso inequívoco daqueles que se julgam poetas e se
acham no direito de fazer o que bem entendem com a palavra do poema. A maior
parte dos poemas deste “Publicação da mortalidade” se perde numa vulgaridade
exemplar, com invenções modernosas que causam arrepios aos que entendem a
poesia como poesia. Basta isso. O mundo está cheio de enganadores. Mas, seja
como for e a bem da verdade, há bons momentos poéticos neste livro. Alguns.
Acredito que uma obra de arte pode revelar um caráter. Pode ser, também, que
uma coisa nada tem a ver com a outra. Os bons instantes poéticos deste livro
são apagados pelo que existe de ruim em suas páginas. De cabotinismo a
literatura está cansada e cheia até os miolos. E o que não falta é cabotino a
preencher os espaços dos inocentes.
Vejam este dito poema chamado “a dor de burro”:
estou a plantar florinhas nas cavidades
dos
olhos para não ver para ver jardins
corro atrás das abelhas mas dá-me
a dor de burro e dá-me a dor de corno
estou a plantar florinhas nas cavidades
dos cornos na arma que me escavou o coração
Então, é assim que funciona. Você tem de ler algo assim e
engolir a seco como se fosse mesmo um poema, na verdade um amontado de palavras
inúteis a construir uma fotografia que chega ao ridículo da própria narrativa que
se diz poética. Narrativa poética? É assim que tem que se dizer diante dos que
se julgam acima de qualquer ponderação, numa análise fria e sem enaltecimentos
inconsequentes dos que costumam bajular as inutilidades.
Para não dizer que não falei das flores, eis um momento de
poesia neste livro de muitas lacunas poéticas: “Sou apenas um poeta/ ignoro
também as coisas todas/ por mais magia que exista em/ dizer que posso falar do
mar/ por incêndio de água e até erguê-lo em/ chamas numa só palavra isso/ será
apenas um/ efeito secundário da boca”. Ocorre que um livro não vive de
instantes e sim de todo seu conjunto. Não pode um livro de poesia viver de
poemas apenas sofríveis.
No fim, para não gastar muito espaço, esta antologia
“Publicação da mortalidade” é um punhado de instantes sofríveis que não
resistem a uma crítica honesta em relação à poesia. Salvam-se alguns momentos
pinçados em alguns ditos poemas comprometidos com o próprio poema. Há figuras
que se atiram num Olimpo como deuses, mas não são deuses de coisa nenhuma.
Assim segue essa narrativa em forma de poema, retratando o
instante, talvez o fim de tudo, ou o início, não se sabe. VHM se debruça nas
palavras e deixa seguir o sentimento até se exaurir em si mesmo, na imobilidade
do que morre ou do que salta da palavra que se faz. Nesse sentido, não há muito
a dizer. Não há nada a dizer. Há, na verdade, tudo a dizer. O poeta morre e vive
muitas vezes nos seus poemas e aí está a sua poesia. O livro não chega à
vulgaridade, mas beira a esse caos de cantares inócuos.
Adorei suas posições. Não o conhecia como poeta e gostei muito. Não o conhecia como crítico e gostei mais ainda. Não conheço o vhm poeta, mas compartilho de sua percepção sobre os amontoados de palavras que boa parte da poesia se tornou. Muito obrigado!
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