Poetas há muitos. Mas são
poucos, os poetas. São poucos os que buscam a palavra no mais fundo de si para
construir o poema sem hesitação poética. Como o carpinteiro que, aos poucos,
vai talhando a madeira em medidas certas. Assim é também com a palavra. São
poucos os poetas que, verdadeiramente, compreendem esse ofício. Vejam o início
deste poema: “Já não é da língua, este estranhamento/ onde reconhecemos o
bárbaro, o invasor/ mas o de uma indigência outra/ a de uma fúria assassina que
se abate/ sobre as cidades antigas do deserto”. Um poema da poeta portuguesa
Maria João Cantinho, também contista e ensaísta. Seu livro “Do Ínfimo”,
publicado no Brasil pela editora Penalux, de São Paulo, é uma afirmação da
poesia que brilha e vai em busca das palavras do universo que o poeta que de
fato é poeta tem dentro de si, como uma paisagem que envolve tudo, o
sentimento, o apelo, a espera, o encontro, o encantamento, mesmo com tanto
desencanto. Maria João Cantinho diz que “a poesia é, antes de mais, um trabalho
de linguagem muito exigente, posto que o poeta é, ao mesmo tempo, sujeito. Mas
o que ele visa é, não apenas exprimir os seus sentimentos, aceder a uma voz
universal e esse é essencialmente o mérito da poesia”. Conhecedora de seu
ofício, a poeta portuguesa sabe percorrer os labirintos da palavra e do poema,
a reger esse instante de plena magia que é o sentir. Como ainda afirma Maria
João Cantinho, “a poesia deve tocar aquele que a lê, estabelecendo com o leitor
um diálogo, senão não cumprirá sua função”. Está correto. É assim. Sempre será
assim. Esse percorrer lugares invisíveis e ocupar o espaço vazio de um tempo
que fere em tudo. Antes de tudo, uma poesia elegante. Maria João nasceu em
Lisboa, viveu a infância em Angola e retornou a Portugal em 1975, com a guerra
de Angola. Doutorou-se e Filosofia Contemporânea. Além de docente, é poeta,
escritora, crítica e ensaísta. Tem vários livros publicados em vários gêneros,
incluindo a poesia. É investigadora do Centro de Filosofia da Faculdade de
Letras de Lisboa e do Centre d´Estudes Juives da Universidade Sorbonee IV.
Editora da revista Caliban, de Lisboa.
Desdobra-se o nojo, o sangue,
a vida
que se celebra no avesso da
noite,
o olhar acossado no nada,
esta raiva
de uma bomba prestes a
detonar
na flor amaldiçoada
de um silêncio inventado.
Como epígrafe de “Do Ínfimo”,
Maria João Cantinho usou palavras de Rainer Maria Rilke, como a situar a poesia
deste belo livro: “Há pessoas que usam um rosto durante anos a fio e é claro
que ele se gasta, se suja, se quebra nas rugas, se alarga como as luvas que
foram usadas em viagem. São pessoas poupadas, simples. Não o mudam, nem sequer
o mandam limpar”. Mas, no fundo, essa citação de Rilke soa como uma certa
homenagem ao poeta que percorre o tempo com palavras inesquecíveis. Maria João
Cantinho desvenda essa trilha da poesia que exige tudo de seu poeta, o suor e a
lágrima, o grito e o silêncio e o que há, ainda, por inventar.
Não sei senão do ínfimo
e do murmúrio das pequenas
coisas,
as que não chegam à palavra
como a sombra ou o vento
desenhando-se sob os álamos,
em quieta reverberação.
O livro de Maria João é feito
de poemas que se fazem sentir, como a abrir um buraco no peito do leitor. As
palavras, quase sempre machucam. Mas não são todos os poetas que sabem disso, que
sabem dos segredos da poesia, dos cortes da poesia, do sangue da poesia. Não
sabem da poesia. Não é o caso de Maria João, que descortina com sua palavra
poética o sentido das coisas que nem todos conseguem ver ou sentir. Vejam a
força poética desta estrofe: “Nos poemas, dir-me-ás,/ poeta de mãos melífluas e
cigarro cansado/ pode ainda escrever-se o nome de deus/ esse hieróglifo sujo de
sangue/.../”. Os poemas de Maria João representam uma viagem a descobrir mundos
talvez tão perto, talvez tão distantes, talvez no lugar em que só os verdadeiros
poetas têm o direito de chegar. A poesia se conquista por direito. Ao poeta
cabe desvendá-la em palavras que tanto podem erguer as paredes como podem abrir
a porta para a descoberta da vida. Os poetas escrevem, todos os poetas
escrevem, mas não são todos que chegam à exuberância na palavra. Maria João
chega. Com versos elegantes, aquela palavra delicada própria dos grandes
poetas.
Porque só se pode sonhar
no lugar de um outro, escrevo
e ainda assim sucumbo
numa mudez sem saída
porque a língua não salva o
olhar
nem a mão, nenhuma mão, pode
tocar-te.
Para Maria João Cantinho, ao
exprimir o universo do poeta, a poesia, dependendo das suas circunstâncias,
pode ser potencialmente uma arma e não faltam casos de poemas que incendiaram
revoluções e posições políticas. Cita, como exemplo, a recente poesia de Bei
Dao, poeta chinês que é um grito de esperança, face à difícil situação que a
China vem enfrentando: “Um poema pode ser esperançoso não apenas para aquele
que o escreve, como também para quem o lê e, nesse sentido, tem uma dimensão
profundamente política e de resistência”. Assim como os poemas, as palavras da
poeta vigorosa que é Maria João Cantinho levam à reflexão num mundo destruído,
de escombros que escondem e ao mesmo tempo mostram a brutalidade de um tempo
mergulhado na escuridão.
De nada vale lembrar, é vão,
aos que já não falam a língua
dos homens
mas balbuciam um estertor de
morte
que as ruínas cantam, no seu
alvorecer
um tempo que foi nosso, um
tempo
que ainda é nosso, intocável,
sagrado.
O tempo que ainda é nosso,
diz a poeta. Um tempo sagrado. Intocável. Esse tempo que falta conquistar de
vez, com a coragem dos que partem para sempre com sua lança de fogo, que é a
palavra, que é o poema. A poesia difícil de encontrar. Muito difícil. Mas lendo
um livro assim, como “O Ínfimo” pode-se ter a certeza de que nem tudo se
perdeu.
Aplausos para este lindíssima texto que exalta a poesia de Maria João Cantinho. Bem merecido!
ResponderExcluirBem apanhado! Bela recensão de uma obra magnífica. Maria João Cantinho não precisa do Prémio Camões para ser uma das maiores figuras das letras portuguesas. Mas merece-o.
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