Fico com as palavras de Ana
Maria Haddad Batista, escritora brasileira,
graduada em Letras, mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica, pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e ainda pós-doutoramento em
História da Ciência, também pela PUC-SP e pela Universidade de Lisboa (FAPESP).
Ela prefaciou os poemas da poeta de Espanha Montserrat Villar Gonzalez, que
lançou no Brasil, pela Editora Patuá, de São Paulo, uma antologia poética,
“Poemas escolhidos”, reunindo parte de
sua obra, uma poesia que revela alto nível de qualidade poética e um zelo
especial no tratamento do poema, na elaboração do poema, para que o poema seja
uma demonstração da palavra mais funda que um poeta pode ter.
Ana Maria Haddad diz: “A poesia de Montserrat Villar
Gonzalez é caudalosa. Amorosa. Profunda. Imersa em memórias que ora se
dispersam para a angústia, ora para momentos de solidão, mas sempre com a
presença de uma ternura que ultrapassa os umbrais da delicadeza e apontam para
o infinito dos afetos que são construídos pelas aberturas que a vida
possibilita”. Palavras corretas. Montserrat é uma poeta que abraça o mundo na
pequenez deste momento que vivemos, com uma palavra solidária que tece a poesia
cuidadosamente e é com esse cuidado que ela elabora seus poemas que marcam sua
trajetória de vida.
Montserrat deu à sua
antologia o título de “Melhores Poemas”, o que deve ter sido uma escolha
difícil, já que todos seus poemas são melhores, resultado de um trabalho que
não cessa nunca. Montse diz que sua relação com o português vem da aldeia onde
nasceu, Baños, Ourense, somente a 14 quilômetros de Portugal. É licenciada em
Filologia Hispânica e Filologia Portuguesa. Professora, poeta e tradutora.
Atualmente trabalha em sua tese de doutorado em Poesia na Universidade de
Coimbra.
No último poema desta antologia, “Testamento”, ela afirma:
“Aqui estou/ na frente do nada./ Nas minhas mãos uma caneta/ e um chocalho de
sonhos/ que contém o mar/ e afoga minha solidão”. Na frente do nada. Como a
dizer: terá valido a pena? Esse é o nada que resta de um mundo mergulhado em
destroços muitas vezes impossíveis de superar. Na Terra, Montse afirma estar
entre suicidas à espera de uma vacina salvadora contra a melancolia. Em outro
poema, ela explica que, diante desse quadro, decidiu abandonar essa realidade:
“Algum dia/ não me lembro quando/ decidi fugir do meu mundo/ e ficar nas
memórias”. Talvez seja mesmo o melhor, viver apenas na memória, onde tudo de
guarda muitas vezes para nunca mais. Poemas assim sinalizam o que Montserrat
Villar Gonzalez tem a dizer, diante de um mundo de negação à própria poesia
que, no entanto, insiste em existir. E essa poesia muitas vezes se rende, como
a poeta observa em outro poema: “Render-se/ perante a tirania da imperfeição/
que nos persegue./ Render-se/ perante a impossibilidade de fazer sorrir/ as
pessoas que olham para nós.”
Com versos assim, a poesia de Montse representa um
testemunho de seu tempo em que quase tudo é amargo e não há por onde escapar.
No entanto, sempre valerá a palavra de um poeta que participa da vida sem fazer
concessões às facilidades. É o caso de Montserrat Villar Gonzalez, que segue
pelos caminhos difíceis de seguir: “Dar pedal para poder atravessar/ a
fronteira do que você não é/ se ficar na mesma casa de bonecas/ que eles nunca
lhe ofereceram”.
Dar pedal até que suas pernas doam
tentando fazer que os filamentos
metálicos
segurem o círculo motor que direcionam
ao não conhecido e, mesmo assim mordido
que você espera para apaziguar o frio.
Dar pedal apertando até a dor
um guiador deteriorado que em alguma
queda
se embutiu em sua barriga, deixando uma
marca
até este presente em que você lembra.
Dar pedal com seus membros inferiores
costurados aos pedais para não desistir
nessa tentativa
de se tornar na cadeia que só trava se
você quiser.
Esse é o universo poético de Montserrat Villar Gonzalez que
vê o mundo com outros olhos. A vida não é mesmo um mar de rosas que muitos
insistem dizer. Cabe ao poeta abrir essa janela para que se veja o que de fato
acontece. Parece estar tudo perdido num deserto de ideias e destinos. Tudo que
se apaga, a Beleza que desaparece, a solidariedade que falta. Os olhos
femininos de Montse explicam melhor um mundo que se destrói a cada dia, cada
vez mais. Ela observa que cada vez mais a poesia se torna
necessária, exatamente quando
tudo parece perdido.
-A poesia é um bálsamo que ensina a respirar de outra
maneira e a ter um outro olhar para a realidade. A poesia e todas as artes
ajudam a viver. Sem ela a vida do ser humano não teria sentido. Tudo seria
estritamente material. Não é possível viver assim. Somos seres espirituais e as
artes, a poesia, preenchem essa parte
que tem em nós a necessidade de viver e acreditar na Beleza, no inatingível.
Montserrat Villar González diz que o ser humano tem a
necessidade de envolver-se com o impossível. Esse lado interior pulsa sempre,
forte, precisa ser explorado pela vida para se ter a certeza de que realmente
estamos vivos. É a necessidade do ser humano de criar e evoluir sempre. É um
sentimento intrínseco a ele mesmo. A poesia e a arte alimentam esse anseio
humano.
-Minha poesia nasce da necessidade de refletir e ordenar em
mundo que nos rodeia, comunicando-se de maneira profundamente honesta. E isso
inclui desde minhas sensações mais íntimas até o mundo que observo e percebo
ser um mundo injusto e cruel, que precisa mudar. Um mundo que precisa ser
transformado em seus valores e princípios. A poesia tem essa condição e essa
força de mudar as coisas em nome da vida por viver.
Montserrat assinala, em outro poema, como se dissesse diante
de seu espelho: “Minha sombra desaparece todas as noites/ e se acomoda
no avesso dos lençóis que me abrigam/
esperando a luz para recuperar a vida/ que me empurra para fora sem que
ninguém/ saiba o que guarda”. A poesia não serve apenas para saudações tantas
vezes inócuas, o que mais se vê atualmente em tanto lugar. Não. A poesia também
serve para alertar, para fazer acordar, para que o homem descubra a vida e viva
a possibilidade de viver. Esse é o chamamento da poeta espanhola Montserrat
Villar González, que atualmente vive em Vigo, embora seja de Salamanca. Essa é
a palavra. Um grito mudo, que entra para dentro.
Às vezes, volto para as florestas do meu êxodo,
para o mar da memória e de meu exílio.
Às vezes eu volto para o inicial mundo
do qual decidi desaparecer.
Às vezes ainda choro por causa da raiva e das
tempestades,
choro com o sangue de velhas feridas que brotam
em alguma noite de carência e frio de carícias.
Às vezes, a pele se transforma em caparação que me
protege
tornando-me um ser de terra enegrecida.
Às vezes morro. Morro e espero para que os fogos
me transformem em cinzas que o vento
faça desaparecer já sem sombra e à deriva.
Mulher, o olhar de Montse é outro. É mais nítido. A poeta
mulher vê além do que a própria poesia pode oferecer. Prova disto é este
“Poemas escolhidos”, uma reunião de poemas deste tempo. Um tempo em ruínas em
que poetas como Montserrat Villar Gonzalez se debruçam e recolhem as coisas
quebradas para transformar em poesia. É bom saber que ainda existem poetas
assim.