domingo, 9 de agosto de 2020

MONTSERRAT VILLAR GONZÁLEZ: POESIA COMO LIBERDADE

 

Fico com as palavras de Ana Maria Haddad Batista, escritora brasileira,  graduada em Letras, mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e ainda pós-doutoramento em História da Ciência, também pela PUC-SP e pela Universidade de Lisboa (FAPESP). Ela prefaciou os poemas da poeta de Espanha Montserrat Villar Gonzalez, que lançou no Brasil, pela Editora Patuá, de São Paulo, uma antologia poética, “Poemas escolhidos”,  reunindo parte de sua obra, uma poesia que revela alto nível de qualidade poética e um zelo especial no tratamento do poema, na elaboração do poema, para que o poema seja uma demonstração da palavra mais funda que um poeta pode ter.

 

         Ana Maria Haddad diz: “A poesia de Montserrat Villar Gonzalez é caudalosa. Amorosa. Profunda. Imersa em memórias que ora se dispersam para a angústia, ora para momentos de solidão, mas sempre com a presença de uma ternura que ultrapassa os umbrais da delicadeza e apontam para o infinito dos afetos que são construídos pelas aberturas que a vida possibilita”. Palavras corretas. Montserrat é uma poeta que abraça o mundo na pequenez deste momento que vivemos, com uma palavra solidária que tece a poesia cuidadosamente e é com esse cuidado que ela elabora seus poemas que marcam sua trajetória de vida.

 

          Montserrat deu à sua antologia o título de “Melhores Poemas”, o que deve ter sido uma escolha difícil, já que todos seus poemas são melhores, resultado de um trabalho que não cessa nunca. Montse diz que sua relação com o português vem da aldeia onde nasceu, Baños, Ourense, somente a 14 quilômetros de Portugal. É licenciada em Filologia Hispânica e Filologia Portuguesa. Professora, poeta e tradutora. Atualmente trabalha em sua tese de doutorado em Poesia na Universidade de Coimbra.

 

         No último poema desta antologia, “Testamento”, ela afirma: “Aqui estou/ na frente do nada./ Nas minhas mãos uma caneta/ e um chocalho de sonhos/ que contém o mar/ e afoga minha solidão”. Na frente do nada. Como a dizer: terá valido a pena? Esse é o nada que resta de um mundo mergulhado em destroços muitas vezes impossíveis de superar. Na Terra, Montse afirma estar entre suicidas à espera de uma vacina salvadora contra a melancolia. Em outro poema, ela explica que, diante desse quadro, decidiu abandonar essa realidade: “Algum dia/ não me lembro quando/ decidi fugir do meu mundo/ e ficar nas memórias”. Talvez seja mesmo o melhor, viver apenas na memória, onde tudo de guarda muitas vezes para nunca mais. Poemas assim sinalizam o que Montserrat Villar Gonzalez tem a dizer, diante de um mundo de negação à própria poesia que, no entanto, insiste em existir. E essa poesia muitas vezes se rende, como a poeta observa em outro poema: “Render-se/ perante a tirania da imperfeição/ que nos persegue./ Render-se/ perante a impossibilidade de fazer sorrir/ as pessoas que olham para nós.”

 

         Com versos assim, a poesia de Montse representa um testemunho de seu tempo em que quase tudo é amargo e não há por onde escapar. No entanto, sempre valerá a palavra de um poeta que participa da vida sem fazer concessões às facilidades. É o caso de Montserrat Villar Gonzalez, que segue pelos caminhos difíceis de seguir: “Dar pedal para poder atravessar/ a fronteira do que você não é/ se ficar na mesma casa de bonecas/ que eles nunca lhe ofereceram”.

 

                            Dar pedal até que suas pernas doam

                            tentando fazer que os filamentos metálicos

                            segurem o círculo motor que direcionam

                            ao não conhecido e, mesmo assim mordido

                            que você espera para apaziguar o frio.

                            Dar pedal apertando até a dor

                            um guiador deteriorado que em alguma queda

                            se embutiu em sua barriga, deixando uma marca

                            até este presente em que você lembra.

                            Dar pedal com seus membros inferiores

                            costurados aos pedais para não desistir nessa tentativa

                            de se tornar na cadeia que só trava se você quiser.

 

         Esse é o universo poético de Montserrat Villar Gonzalez que vê o mundo com outros olhos. A vida não é mesmo um mar de rosas que muitos insistem dizer. Cabe ao poeta abrir essa janela para que se veja o que de fato acontece. Parece estar tudo perdido num deserto de ideias e destinos. Tudo que se apaga, a Beleza que desaparece, a solidariedade que falta. Os olhos femininos de Montse explicam melhor um mundo que se destrói a cada dia, cada vez mais. Ela observa que cada vez mais a poesia se torna

necessária, exatamente quando tudo parece perdido.

 

         -A poesia é um bálsamo que ensina a respirar de outra maneira e a ter um outro olhar para a realidade. A poesia e todas as artes ajudam a viver. Sem ela a vida do ser humano não teria sentido. Tudo seria estritamente material. Não é possível viver assim. Somos seres espirituais e as artes, a poesia,  preenchem essa parte que tem em nós a necessidade de viver e acreditar na Beleza, no inatingível.

 

         Montserrat Villar González diz que o ser humano tem a necessidade de envolver-se com o impossível. Esse lado interior pulsa sempre, forte, precisa ser explorado pela vida para se ter a certeza de que realmente estamos vivos. É a necessidade do ser humano de criar e evoluir sempre. É um sentimento intrínseco a ele mesmo. A poesia e a arte alimentam esse anseio humano.

 

         -Minha poesia nasce da necessidade de refletir e ordenar em mundo que nos rodeia, comunicando-se de maneira profundamente honesta. E isso inclui desde minhas sensações mais íntimas até o mundo que observo e percebo ser um mundo injusto e cruel, que precisa mudar. Um mundo que precisa ser transformado em seus valores e princípios. A poesia tem essa condição e essa força de mudar as coisas em nome da vida por viver.  

        

         Montserrat assinala, em outro poema, como se dissesse diante de seu espelho: “Minha sombra desaparece todas as noites/ e se acomoda

 no avesso dos lençóis que me abrigam/ esperando a luz para recuperar a vida/ que me empurra para fora sem que ninguém/ saiba o que guarda”. A poesia não serve apenas para saudações tantas vezes inócuas, o que mais se vê atualmente em tanto lugar. Não. A poesia também serve para alertar, para fazer acordar, para que o homem descubra a vida e viva a possibilidade de viver. Esse é o chamamento da poeta espanhola Montserrat Villar González, que atualmente vive em Vigo, embora seja de Salamanca. Essa é a palavra. Um grito mudo, que entra para dentro.

 

                   Às vezes, volto para as florestas do meu êxodo,

                   para o mar da memória e de meu exílio.

                   Às vezes eu volto para o inicial mundo

                   do qual decidi desaparecer.

                   Às vezes ainda choro por causa da raiva e das tempestades,

                   choro com o sangue de velhas feridas       que brotam

                   em alguma noite de carência e frio de carícias.

                   Às vezes, a pele se transforma em caparação que me protege

                   tornando-me um ser de terra enegrecida.

                   Às vezes morro. Morro e espero para que os fogos

                   me transformem em cinzas que o vento

                   faça desaparecer já sem sombra e à deriva.       

 

         Mulher, o olhar de Montse é outro. É mais nítido. A poeta mulher vê além do que a própria poesia pode oferecer. Prova disto é este “Poemas escolhidos”, uma reunião de poemas deste tempo. Um tempo em ruínas em que poetas como Montserrat Villar Gonzalez se debruçam e recolhem as coisas quebradas para transformar em poesia. É bom saber que ainda existem poetas assim.