quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

MARIA JOÃO CANTINHO: O POEMA QUE CANTA A BELEZA






Poetas há muitos. Mas são poucos, os poetas. São poucos os que buscam a palavra no mais fundo de si para construir o poema sem hesitação poética. Como o carpinteiro que, aos poucos, vai talhando a madeira em medidas certas. Assim é também com a palavra. São poucos os poetas que, verdadeiramente, compreendem esse ofício. Vejam o início deste poema: “Já não é da língua, este estranhamento/ onde reconhecemos o bárbaro, o invasor/ mas o de uma indigência outra/ a de uma fúria assassina que se abate/ sobre as cidades antigas do deserto”. Um poema da poeta portuguesa Maria João Cantinho, também contista e ensaísta. Seu livro “Do Ínfimo”, publicado no Brasil pela editora Penalux, de São Paulo, é uma afirmação da poesia que brilha e vai em busca das palavras do universo que o poeta que de fato é poeta tem dentro de si, como uma paisagem que envolve tudo, o sentimento, o apelo, a espera, o encontro, o encantamento, mesmo com tanto desencanto. Maria João Cantinho diz que “a poesia é, antes de mais, um trabalho de linguagem muito exigente, posto que o poeta é, ao mesmo tempo, sujeito. Mas o que ele visa é, não apenas exprimir os seus sentimentos, aceder a uma voz universal e esse é essencialmente o mérito da poesia”. Conhecedora de seu ofício, a poeta portuguesa sabe percorrer os labirintos da palavra e do poema, a reger esse instante de plena magia que é o sentir. Como ainda afirma Maria João Cantinho, “a poesia deve tocar aquele que a lê, estabelecendo com o leitor um diálogo, senão não cumprirá sua função”. Está correto. É assim. Sempre será assim. Esse percorrer lugares invisíveis e ocupar o espaço vazio de um tempo que fere em tudo. Antes de tudo, uma poesia elegante. Maria João nasceu em Lisboa, viveu a infância em Angola e retornou a Portugal em 1975, com a guerra de Angola. Doutorou-se e Filosofia Contemporânea. Além de docente, é poeta, escritora, crítica e ensaísta. Tem vários livros publicados em vários gêneros, incluindo a poesia. É investigadora do Centro de Filosofia da Faculdade de Letras de Lisboa e do Centre d´Estudes Juives da Universidade Sorbonee IV. Editora da revista Caliban, de Lisboa.

Desdobra-se o nojo, o sangue, a vida
que se celebra no avesso da noite,
o olhar acossado no nada, esta raiva
de uma bomba prestes a detonar
na flor amaldiçoada
de um silêncio inventado.

Como epígrafe de “Do Ínfimo”, Maria João Cantinho usou palavras de Rainer Maria Rilke, como a situar a poesia deste belo livro: “Há pessoas que usam um rosto durante anos a fio e é claro que ele se gasta, se suja, se quebra nas rugas, se alarga como as luvas que foram usadas em viagem. São pessoas poupadas, simples. Não o mudam, nem sequer o mandam limpar”. Mas, no fundo, essa citação de Rilke soa como uma certa homenagem ao poeta que percorre o tempo com palavras inesquecíveis. Maria João Cantinho desvenda essa trilha da poesia que exige tudo de seu poeta, o suor e a lágrima, o grito e o silêncio e o que há, ainda, por inventar.

Não sei senão do ínfimo
e do murmúrio das pequenas coisas,
as que não chegam à palavra
como a sombra ou o vento
desenhando-se sob os álamos,
em quieta reverberação.

O livro de Maria João é feito de poemas que se fazem sentir, como a abrir um buraco no peito do leitor. As palavras, quase sempre machucam. Mas não são todos os poetas que sabem disso, que sabem dos segredos da poesia, dos cortes da poesia, do sangue da poesia. Não sabem da poesia. Não é o caso de Maria João, que descortina com sua palavra poética o sentido das coisas que nem todos conseguem ver ou sentir. Vejam a força poética desta estrofe: “Nos poemas, dir-me-ás,/ poeta de mãos melífluas e cigarro cansado/ pode ainda escrever-se o nome de deus/ esse hieróglifo sujo de sangue/.../”. Os poemas de Maria João representam uma viagem a descobrir mundos talvez tão perto, talvez tão distantes, talvez no lugar em que só os verdadeiros poetas têm o direito de chegar. A poesia se conquista por direito. Ao poeta cabe desvendá-la em palavras que tanto podem erguer as paredes como podem abrir a porta para a descoberta da vida. Os poetas escrevem, todos os poetas escrevem, mas não são todos que chegam à exuberância na palavra. Maria João chega. Com versos elegantes, aquela palavra delicada própria dos grandes poetas.

Porque só se pode sonhar
no lugar de um outro, escrevo
e ainda assim sucumbo
numa mudez sem saída
porque a língua não salva o olhar
nem a mão, nenhuma mão, pode tocar-te.

Para Maria João Cantinho, ao exprimir o universo do poeta, a poesia, dependendo das suas circunstâncias, pode ser potencialmente uma arma e não faltam casos de poemas que incendiaram revoluções e posições políticas. Cita, como exemplo, a recente poesia de Bei Dao, poeta chinês que é um grito de esperança, face à difícil situação que a China vem enfrentando: “Um poema pode ser esperançoso não apenas para aquele que o escreve, como também para quem o lê e, nesse sentido, tem uma dimensão profundamente política e de resistência”. Assim como os poemas, as palavras da poeta vigorosa que é Maria João Cantinho levam à reflexão num mundo destruído, de escombros que escondem e ao mesmo tempo mostram a brutalidade de um tempo mergulhado na escuridão.

De nada vale lembrar, é vão,
aos que já não falam a língua dos homens
mas balbuciam um estertor de morte
que as ruínas cantam, no seu alvorecer
um tempo que foi nosso, um tempo
que ainda é nosso, intocável, sagrado.

O tempo que ainda é nosso, diz a poeta. Um tempo sagrado. Intocável. Esse tempo que falta conquistar de vez, com a coragem dos que partem para sempre com sua lança de fogo, que é a palavra, que é o poema. A poesia difícil de encontrar. Muito difícil. Mas lendo um livro assim, como “O Ínfimo” pode-se ter a certeza de que nem tudo se perdeu.