domingo, 26 de julho de 2020

A POESIA SOFRÍVEL DE VALTER HUGO MÃE


Valter Hugo Mãe - Salvador recebe Valter Hugo Mãe em conferência especial |  Fronteiras do Pensamento
         

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         No Brasil, a poesia transformou-se num imenso vale de lágrimas. É uma terra de poetas e pouca poesia. A produção poética atual no Brasil chega a ser deplorável, sem generalizar. Repetindo: sem generalizar. Mas acredito que esteja tudo correto, num país onde as livrarias praticamente não existem mais. Tem-se que se acrescentar, também, a mediocridade dos suplementos culturais que fabricam um grande “poeta” do dia para noite. “Poetas” que desaparecem da noite para o dia. A fragilidade dos poemas escritos em terras brasileiras atualmente chega a assustar. E essa angústia atingiu também a música popular brasileira, algo que não tem classificação hoje, tal o baixo nível. Poucos são os poetas que, verdadeiramente, levam a poesia a sério. As cenas chegam a ser ridículas e desanimadoras. Peço desculpas ao leitor para particularizar uma situação lastimável: no que me diz respeito, fugi para Portugal, terra de meus pais, e me dediquei à poesia portuguesa por 15 anos, o que me deu um lugar de respeito neste país sem rumo.

         Essa introdução serve para falar do poeta português Valter Hugo Mãe, do poeta, não do prosador, autor de romances bem aclamados pela crítica. Crítica?  E até nesses romances é possível encontrar essa poesia sofrível que, ao que tudo indica, reina soberana em quase todo lugar do planeta. Pelo menos no Brasil, onde vivo perdido a ouvir a mesma palavras de sempre. Refiro-me à poesia reunida de Valter Hugo Mãe, “Publicação da mortalidade” (Assírio & Alvim), um livro que revela que a poesia nem sempre é levada a sério como deveria ser em qualquer cultura civilizada.  Atualmente, poesia e poeta são coisas raras. É preciso aproveitar o momento de alguma descoberta da poesia consistente, escrita por poetas que conhecem seu ofício. Mas são poucos.

         Valter Hugo Mãe costuma dizer que a poesia é um sentimento. Esse é o significado, sem mais nem menos. No caso do Brasil, colocar sentimento num poema é um crime. Segue-se a cartilha de João Cabral de Melo Neto, para quem o poema devia ser como uma pedra de gelo. Faz-se um poema colocando um tijolinho sobre outro tijolinho. Nada de emoção. Poemas feitos com fita métrica, compasso, fio de prumo e outras coisas que o valham. Endeusado no Brasil, com seus poemas construídos como se fosse um edifício. Que vá para o inferno, mais os que o seguem, essa coisa chamada concretismo, que nem sei se existe ainda.

         Quem não se beira da poesia – diz Valter Hugo Mãe – não sente por completo, como se nunca experimentasse a alegria ou a tristeza, a ansiedade ou a frustração. Está correto. Mais do que correto. É necessário saber, no entanto, se ele está falando sério. Em entrevista a Severino Francisco, do jornal Correio Braziliense, de Brasília, VHM afirmou que a poesia “serve para que nos completemos no conhecimento de nós mesmos e do mundo”. Para ele, a poesia é um instrumento de revelação: “Sem o poder da palavra poética estamos algo diminutos na construção de nosso pensamento, de nossa identidade. Sigo convencido de que é na poesia que reside a maior força de que sou capaz”. Será? Será mesmo? Seja como for, quem dirá o contrário? Ninguém que de fato conheça poesia, que saiba o que é poesia, o que a poesia representa na vida do homem num mundo destroçado e invertido em todos seus valores.

                   se o vento é a ignição das árvores venha o
                   temporal elas ateadas sobre
                   as nossas cabeças desmembradas
                   da terra como voadores desajeitados meu pai
                   já conheço o vão da tua fome peço-te
                   faz de mim uma colher divina
   
         A poesia não é e nunca poderá ser uma aventura, como ocorre no Brasil atualmente, sem generalizar. Repetindo: sem generalizar. E parece não ser apenas no Brasil, em Portugal também. E tudo devidamente amparado por um jornalismo cultural que parece não ter compromisso com nada. Não pode ser uma aventura porque a poesia exige sabedoria e esse sentir as coisas ao redor, com a observação necessária, que nem todos possuem. E não possuem porque simplesmente não são poetas e ponto final. Valter Hugo diz num de seus poemas: “pela fortuna do verso/ sei que morte inteira/ passarei pelo buraco da agulha/ a biblioteca”. Vejam trecho do “poema político incorreto”:

                   as feministas entraram no parlamento
                   e depositaram as mamas nas bancadas
                   depois em silêncio nervoso
                   saíram marchando os homens ávidos
                   à força de serem ministros
                   levaram o dobro ou o triplo para casa
                   as feministas lamentaram o fato
                   disseram que contavam com um
                   contra-ataque mais inteligente

         Diz tudo. Ou nada. Um retrato do mundo em que todos estamos metidos. Na poesia do dia a dia. Mergulhados até o pescoço. E não há escapatória, em tempos do “politicamente correto”. Isso fica com os discípulos de João Cabral. Ele se dá bem com sua régua e compasso a fazer seu poema de letras contadas. E discípulos desavisados estão até mesmo em Portugal, que dizem ter certamente a poesia mais rica do mundo.

         Certa vez, o Caderno de Literatura Brasileira, do Instituto Moreira Salles, de São Paulo, dedicou o número a João Cabral. E mostraram uma foto em página dupla de João Cabral diante de um canavial. Ele então disse: “Um mar verde”. Pois é, essa frase banal “um mar verde” pareceu uma grande lição de poesia mas, no fundo, representava uma palavra inexpressiva e até insignificante. “Um mar verde”. É assim que funciona aqui o jornalismo cultural, enaltecendo bobagens que nada dizem em nome não se sabe do quê. No fundo, uma grande estupidez. A ordem é enaltecer coisas assim. Mas nem tudo é assim, sempre será preciso evitar a generalização. Por honestidade.

         Para Valter Hugo Mãe, a poesia pode ser a salvação. Todos os versos são a memória dessa salvação: “Não sei se vou estar a serviço da poesia ou da prosa. Sei que não sei servir melhor do que a literatura e as palavras”, diz ele. Confessa que sua poesia influenciou sua prosa. Observa que sempre quis ser poeta e hoje é um poeta envolvido pela prosa. Isso é verdadeiro, posto que em muitos trechos de seus romances é possível encontrar algum momento poético: “Minha identidade literária vem da poesia”, como afirma. No entanto, tudo leva a crer que o discurso uma coisa e a poesia produzida é outra.

         A afirmação leva a um instante qualquer na vida de VHM, se é que assim pode ser devidamente anotado em forma de poema. Isso identifica o autor. Ele conversa consigo mesmo, mas nem tudo é possível. Mostra seu pensamento, o que sente, o que existe e o que deixar de existir. Os instantes são recolhidos, essas palavras invisíveis que fazem uma fotografia. Um outro momento diz assim:  “...reajo ao pescoço que/ iça o sol logo a/ voz matando a fome do / silêncio sou colhido depois/ de ferver em sono brando quando/ seguro o fôlego para manso/ acordar intacto/”.

         E assim caminha a poesia do instante passada para o papel e, nesse espaço, entra certa leviandade poética. A amargura de estar num mundo hostil em quase tudo: “...uso o coração para os alfinetes subo/ as beiras das calças coso os botões alinhavo/ camisas a cortar amariquei também os/ braços com tatuagens do teu/ nome vou esquecer-te rapidamente porque o/ amor inventa o ódio/”.

         VHM não deixa de usar a ironia diante do que vê. Em alguns casos, só mesmo a ironia para enfrentar tantas coisas destruídas. Ironia inclusive para ele mesmo se situar diante do que escreve em forma de poema. Não há nada a fazer. Muitos instantes revelam isso. Nada a fazer, senão que tudo siga como for possível seguir. “...fui doente de um poema/ e músico/ toquei silêncio enquanto/ kathleen ferrier cantou/”.

         Valter Hugo Mãe poderia vir para o Brasil com sua poesia porque se daria bem. Convém lembrar que me refiro à poesia, embora a prosa também seja bastante questionável. É um desses casos em que o “engrandecimento” de uma obra razoável ganha ares de esplendores porque em reinos da mediocridade tudo pode acontecer.

         Um exemplo dessa inutilidade poética, a começar pelo título, é o poema “gordo e careca”. Como se pode notar, duas palavras magníficas que de cara revelam o que tal poeta quer transmitir nestes tempos de muitas mentiras literárias. Para utilizar um termo português, o poema segue em disparates que funcionam como algoz de seu leitor desavisado, com um pedantismo fácil de encontrar no Brasil, mas não em Portugal. No entanto, Portugal também dispõe desses disparates protegidos por uma mídia que nada deixa a desejar à mídia cultural brasileira.

         Este é o caso inequívoco daqueles que se julgam poetas e se acham no direito de fazer o que bem entendem com a palavra do poema. A maior parte dos poemas deste “Publicação da mortalidade” se perde numa vulgaridade exemplar, com invenções modernosas que causam arrepios aos que entendem a poesia como poesia. Basta isso. O mundo está cheio de enganadores. Mas, seja como for e a bem da verdade, há bons momentos poéticos neste livro. Alguns. Acredito que uma obra de arte pode revelar um caráter. Pode ser, também, que uma coisa nada tem a ver com a outra. Os bons instantes poéticos deste livro são apagados pelo que existe de ruim em suas páginas. De cabotinismo a literatura está cansada e cheia até os miolos. E o que não falta é cabotino a preencher os espaços dos inocentes.

         Vejam este dito poema chamado “a dor de burro”:

                   estou a plantar florinhas nas cavidades
                    dos olhos para não ver para ver jardins

                   corro atrás das abelhas mas dá-me
                   a dor de burro e dá-me a dor de corno

                   estou a plantar florinhas  nas cavidades
                   dos cornos na arma que me escavou o coração

         Então, é assim que funciona. Você tem de ler algo assim e engolir a seco como se fosse mesmo um poema, na verdade um amontado de palavras inúteis a construir uma fotografia que chega ao ridículo da própria narrativa que se diz poética. Narrativa poética? É assim que tem que se dizer diante dos que se julgam acima de qualquer ponderação, numa análise fria e sem enaltecimentos inconsequentes dos que costumam bajular as inutilidades.               
         Para não dizer que não falei das flores, eis um momento de poesia neste livro de muitas lacunas poéticas: “Sou apenas um poeta/ ignoro também as coisas todas/ por mais magia que exista em/ dizer que posso falar do mar/ por incêndio de água e até erguê-lo em/ chamas numa só palavra isso/ será apenas um/ efeito secundário da boca”. Ocorre que um livro não vive de instantes e sim de todo seu conjunto. Não pode um livro de poesia viver de poemas apenas sofríveis.

         No fim, para não gastar muito espaço, esta antologia “Publicação da mortalidade” é um punhado de instantes sofríveis que não resistem a uma crítica honesta em relação à poesia. Salvam-se alguns momentos pinçados em alguns ditos poemas comprometidos com o próprio poema. Há figuras que se atiram num Olimpo como deuses, mas não são deuses de coisa nenhuma.

         Assim segue essa narrativa em forma de poema, retratando o instante, talvez o fim de tudo, ou o início, não se sabe. VHM se debruça nas palavras e deixa seguir o sentimento até se exaurir em si mesmo, na imobilidade do que morre ou do que salta da palavra que se faz. Nesse sentido, não há muito a dizer. Não há nada a dizer. Há, na verdade, tudo a dizer. O poeta morre e vive muitas vezes nos seus poemas e aí está a sua poesia. O livro não chega à vulgaridade, mas beira a esse caos de cantares inócuos.