Desta vez a Poesia participará das comemorações do aniversário de São Paulo, que faz 463 anos Uma bela antologia com poetas da cidade, publicada pela SESI-Editora-SP, será lançada na Casa das Rosas, na Avenida Paulista, com um recital de poesia. A ideia da antologia partiu do poeta e ensaísta Carlos Felipe Moisés e contou com a ajuda de Victor Del Franco. Foram escolhidos nomes de ruas e locais paulistanos que fogem ao comum, como Rua das Flores, Largo da Misericórdia, Ladeira da Memória, Rua Aurora, Viaduto do Chá, Vila das Belezas, Beco dos Aflitos e outros. Cada poeta escolheu um lugar ou rua que, de alguma maneira, tenham a ver alguma coisa com sua vida. Carlos Felipe explica que a ideia de uma antologia assim nasceu de alguns versos de Mário de Andrade: "Ruas de meu São Paulo/ onde está o amor vivo?/ Onde está?". Participam poetas como os próprios organizadores, Carlos Felipe Moisés e Victor Del Franco, Celso de Alencar, Carlos Machado, Glauco Mattoso, Renata Pallottini, Paulo Bomfim, Ronaldo Cagiano, Rubens Jardim, Luiz Roberto Guedes, Reynaldo Damázio e vários outros. Cada poeta participa com poema e um pequeno depoimento. Como participante, escolhi a Rua Brejo Alegre, no Brooklin Paulista, bairro onde passei minha infância, adolescência e onde vivo até hoje.
PEQUENO DEPOIMENTO
Nasci na Maternidade
de São Paulo, que não existe mais, na rua Frei Caneca. Faz algum tempo
uma amiga interessou-se em produzir um livro com poemas meus que citavam ruas
de São Paulo, especialmente os publicados nos anos 70 e 80. Sem contar os
romances como “A Faca no Ventre” – que foi publicado no Japão –, ”O Defunto -
Uma História Brasileira” - e “Autópsia”.
Essa amiga pesquisou todos os meus poemas que citam nomes de ruas de São Paulo
e a primeira (Rua da Consolação) ocorreu em “O Sermão do Viaduto”, os poemas
que eu dizia nos anos 60 no Viaduto do Chá, com microfone e quatro
alto-falantes. Foram nove leituras e cinco prisões pelo DOPS, até a proibição
definitiva dos recitais. A sexta prisão, a mais dura e violenta, ocorreu em
1969, quando a polícia da ditadura descobriu que era eu quem desenhava os
cartazes do Partido Socialista Brasileiro, por meio de uma exposição de
desenhos que fiz no Instituto Graal, na Rua Cardoso de Almeida, promovida pela
Igreja dos Dominicanos, nas Perdizes. Essa amiga chegou à conclusão que de
todos os poetas que pesquisou, eu sou o que mais citou ruas da cidade de São
Paulo em poemas. Acho a ideia de Carlos Felipe Moisés de organizar uma
antologia com poetas falando das ruas paulistanas das mais louváveis,
iniciativa concluída por Victor Del Franco. Uma das ruas que mais guardo em mim
é a Brejo Alegre, no Brooklin Paulista Novo. O bairro era dividido em duas
turmas, a da avenida Central (hoje Padre Antonio José dos Santos) e a da rua
Brejo Alegre. As duas turmas rivais eram separadas pela Sociedade Hípica
Paulista, que até hoje tem o seu portão principal na rua Conceição de Monte
Alegre. Ninguém de uma turma podia entrar no território alheio. Era briga
certa, clima que se acirrava mais no futebol, quando os times das duas turmas
se confrontavam. Eu morava com meus pais na rua Catipará. Naquela época, eu
jogava no juvenil do Corinthians, que tinha como técnico o ex-jogador Rato. Fui
levado ao Corinthians pelo então diretor do clube, Wadid Helou, que alguns anos
depois tornou-se seu presidente. Ele me viu jogar no Grêmio Desportivo Monções,
que tinha seu campo na rua Flórida. De vez em quando, junto com alguns amigos,
eu me atrevia a invadir o território inimigo da turma da rua Brejo Alegre.
Apanhei muito por esse atrevimento. Mas de vez em quando a minha turma pegava
alguém do outro lado da Hípica e espancava também. Para quem já escrevia poesia
e publicava no jornalzinho do bairro o futuro não era muito claro. O trabalho
começou bastante cedo: com 12 anos eu era jardineiro em Cidade Monções, onde
viviam os ricos. Também fazia carreto na feira livre da rua Pensilvânia, com
meu carrinho de rolimã, toda quarta-feira, de onde eu levava os restos para
casa, única maneira de comer um pedaço de fruta. Depois, aos 14 anos, fui
operário numa fábrica de canetas, na rua Arandu. O dono da fábrica, a seguir,
me levou para ser contínuo no extinto Correio Paulistano, na rua Líbero Badaró,
que foi o meu primeiro contato com o Jornalismo. A seguir, vieram os estudos, o
encontro com o Massao Ohno, os Novíssimos e a vida por enfrentar, especialmente
após o golpe de 1964. Guardo cicatrizes até hoje. Nunca serão esquecidas. Hoje
eu me olho no espelho e me pergunto: “Então, foi para isso?”. Mas guardo também
esses momentos singelos de uma infância e adolescência bastante pobres e, no
meio dessa pobreza, a rua Brejo Alegre que faz parte de minha vida. Convém
dizer que, depois dos 20 anos, todos nos tornamos amigos e até fizemos parte de
um coral na Igreja São João de Brito, que fica ainda na rua Luisiânia. E cada
um seguiu o seu caminho. Muitos não existem mais.
RUA BREJO ALEGRE
Os operários da rua Brejo Alegre não existem mais
mas estão guardados na memória onde repousam as imagens
algumas fotografias perdidas sem palavras.
Os operários da rua Brejo Alegre
partiram num navio de esquecimentos
um mar de terra escura
como uma lápide e seus lamentos.
Quando eu era vivo percorria as ruas de uma cidade
repleta de igreja e hóstias sagradas
ao cantos de anjos tristes que dormiam na minha casa.
Gostava das ruas com nome de santos
porque andava a rezar como quem se esquece
assim em altares que não sei mais
no murmúrio da lágrima de uma prece.
2
Eu era um poeta parnasiano em 1902
quando comecei a conhecer a cidade em que me esqueço
como se me percorresse em mim mesmo
os becos das mulheres que me amaram, que desconheço.
Os operários das fábricas das construções das praças
o coração vermelho no fio de sangue a escorrer do lábio
um sabor de domingo ao entardecer
quando quase tudo se esconde
e São Bento se cala
monge que se morre em apelos
no canto vazio de uma sala.
Os rios também eram vermelhos
desse vermelho tão vermelho
que o vermelho não compreende
no corte da ferida aberta a palavra morta que não sabe
já que a boca não diz que nada é necessário
quando amanhecem as auroras em palcos perdidos
teatros de personagens que se afligem
em sílabas de ais nos poemas feridos.
3
Sou apenas um transeunte de ruas ausentes
apagadas de um mapa invisível
que ainda trago no bolso do casaco
aquele da Galeria Metrópole da guitarra elétrica
e de tantas mulheres que amei em desespero
no Copan onde residi com uma dor impossível de sentir
aquele delírio dos anjos expulsos
os que querem ficar naquela hora de se ir
faces que se perdem
no outro lado do espelho
um lugar no paraíso
com o grito mais vermelho
o que se apaga nesses becos
nada novo tudo velho.
Cidade de São Paulo de São Judas de São Francisco
Santa Maria Madalena Santa Rita de Cássia
Nossa Senhora de Fátima São José
As ruas de Álvares de Azevedo
pecados que ainda guardo como relíquia
esse Deus que me faz mastigar pecados
criaturas que saltam de mim das minhas ruas
praças que esqueci no meu nome
uma bolsa de estrelas cadentes minhas luas
a pressa de não viver num labirinto
o poema que se cala nas sílabas nuas
nas verdades da poesia em que minto
sílabas decoradas dez oito treze uma duas
e mais e mais e mais e mais que já não sinto
as mulheres que me habitam bailarinas do nada
esse homem quieto que se percorre e se delira
antigos poetas nos sobrados anoitecidos
que ainda acreditavam numa lira.
4
Angélicas ruas de antigas mulheres
de bocas vermelhas no esmalte de unhas longas
que no Arouche engoliam as floriculturas
mistura na memória das ladeiras
em que os sapatos se perdem dos destinos
que se vivem na busca da liberdade
assim queriam os operários da Brejo Alegre
mas agora tudo é tarde.
5
Morreram-se em si
não resta nada
senão o que se tece no que se sente
o que se esquece no ausente o que entardece
na tarde que anoitece inclemente
o que nunca permanece no que se mente
calada palavra que se enaltece
no brejo das almas serpente que se padece
e no entanto amanhece
a manhã mais veemente que escurece
sonho demente
que nas horas desaparece no mais evidente
que enlouquece assim demente
que se aquece alma clemente
a tez tecida somente da lã que esvanece
o que é aparente no que se foge
o que aparece vagamente e se carece
a face que se oferece e se conhece
morta morta morta gente
o que não é mas acontece
não existem mais os operários da rua Brejo Alegre
engolidos calados ao passar dos anos
nos comícios mudos de promessas nulas
no sonho dos desenganos.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirSe pudesse estaria aí na casa das rodas...
ResponderExcluirLinda essa ideia de reunir os poetas que falaram sobre as ruas de São Paulo. ...
ResponderExcluirCaríssimo Poeta, eu nunca deixarei de dizer que sua poesia me salvou. Na verdade, ela ainda me salva, como o som da flauta que tocastes.
ResponderExcluirObrigado, Poeta!
Um abraço!