terça-feira, 24 de janeiro de 2017

ANIVERSÁRIO DE SÃO PAULO - RUA BREJO ALEGRE



Desta vez a Poesia participará das comemorações do aniversário de São Paulo, que faz 463 anos Uma bela antologia com poetas da cidade, publicada pela SESI-Editora-SP, será lançada na Casa das Rosas, na Avenida Paulista, com um recital de poesia. A ideia da antologia partiu do poeta e ensaísta Carlos Felipe Moisés e contou com a ajuda de Victor Del Franco. Foram escolhidos nomes de ruas e locais paulistanos que fogem ao comum, como Rua das Flores, Largo da Misericórdia, Ladeira da Memória, Rua Aurora, Viaduto do Chá, Vila das Belezas, Beco dos Aflitos e outros. Cada poeta escolheu um lugar ou rua que, de alguma maneira, tenham a ver alguma coisa com sua vida. Carlos Felipe explica que a ideia de uma antologia assim nasceu de alguns versos de Mário de Andrade: "Ruas de meu São Paulo/ onde está o amor vivo?/ Onde está?". Participam poetas como os próprios organizadores, Carlos Felipe Moisés e Victor Del Franco, Celso de Alencar, Carlos Machado, Glauco Mattoso, Renata Pallottini, Paulo Bomfim, Ronaldo Cagiano, Rubens Jardim, Luiz Roberto Guedes, Reynaldo Damázio e vários outros. Cada poeta participa com poema e um pequeno depoimento. Como participante, escolhi a Rua Brejo Alegre, no Brooklin Paulista, bairro onde passei minha infância, adolescência e onde vivo até hoje.

 
PEQUENO DEPOIMENTO

Nasci na Maternidade de São Paulo, que não existe mais, na rua Frei Caneca. Faz algum tempo uma amiga interessou-se em produzir um livro com poemas meus que citavam ruas de São Paulo, especialmente os publicados nos anos 70 e 80. Sem contar os romances como “A Faca no Ventre” – que foi publicado no Japão –, ”O Defunto - Uma História Brasileira” -  e “Autópsia”. Essa amiga pesquisou todos os meus poemas que citam nomes de ruas de São Paulo e a primeira (Rua da Consolação) ocorreu em “O Sermão do Viaduto”, os poemas que eu dizia nos anos 60 no Viaduto do Chá, com microfone e quatro alto-falantes. Foram nove leituras e cinco prisões pelo DOPS, até a proibição definitiva dos recitais. A sexta prisão, a mais dura e violenta, ocorreu em 1969, quando a polícia da ditadura descobriu que era eu quem desenhava os cartazes do Partido Socialista Brasileiro, por meio de uma exposição de desenhos que fiz no Instituto Graal, na Rua Cardoso de Almeida, promovida pela Igreja dos Dominicanos, nas Perdizes. Essa amiga chegou à conclusão que de todos os poetas que pesquisou, eu sou o que mais citou ruas da cidade de São Paulo em poemas. Acho a ideia de Carlos Felipe Moisés de organizar uma antologia com poetas falando das ruas paulistanas das mais louváveis, iniciativa concluída por Victor Del Franco. Uma das ruas que mais guardo em mim é a Brejo Alegre, no Brooklin Paulista Novo. O bairro era dividido em duas turmas, a da avenida Central (hoje Padre Antonio José dos Santos) e a da rua Brejo Alegre. As duas turmas rivais eram separadas pela Sociedade Hípica Paulista, que até hoje tem o seu portão principal na rua Conceição de Monte Alegre. Ninguém de uma turma podia entrar no território alheio. Era briga certa, clima que se acirrava mais no futebol, quando os times das duas turmas se confrontavam. Eu morava com meus pais na rua Catipará. Naquela época, eu jogava no juvenil do Corinthians, que tinha como técnico o ex-jogador Rato. Fui levado ao Corinthians pelo então diretor do clube, Wadid Helou, que alguns anos depois tornou-se seu presidente. Ele me viu jogar no Grêmio Desportivo Monções, que tinha seu campo na rua Flórida. De vez em quando, junto com alguns amigos, eu me atrevia a invadir o território inimigo da turma da rua Brejo Alegre. Apanhei muito por esse atrevimento. Mas de vez em quando a minha turma pegava alguém do outro lado da Hípica e espancava também. Para quem já escrevia poesia e publicava no jornalzinho do bairro o futuro não era muito claro. O trabalho começou bastante cedo: com 12 anos eu era jardineiro em Cidade Monções, onde viviam os ricos. Também fazia carreto na feira livre da rua Pensilvânia, com meu carrinho de rolimã, toda quarta-feira, de onde eu levava os restos para casa, única maneira de comer um pedaço de fruta. Depois, aos 14 anos, fui operário numa fábrica de canetas, na rua Arandu. O dono da fábrica, a seguir, me levou para ser contínuo no extinto Correio Paulistano, na rua Líbero Badaró, que foi o meu primeiro contato com o Jornalismo. A seguir, vieram os estudos, o encontro com o Massao Ohno, os Novíssimos e a vida por enfrentar, especialmente após o golpe de 1964. Guardo cicatrizes até hoje. Nunca serão esquecidas. Hoje eu me olho no espelho e me pergunto: “Então, foi para isso?”. Mas guardo também esses momentos singelos de uma infância e adolescência bastante pobres e, no meio dessa pobreza, a rua Brejo Alegre que faz parte de minha vida. Convém dizer que, depois dos 20 anos, todos nos tornamos amigos e até fizemos parte de um coral na Igreja São João de Brito, que fica ainda na rua Luisiânia. E cada um seguiu o seu caminho. Muitos não existem mais.

   

RUA BREJO ALEGRE


Os operários da rua Brejo Alegre não existem mais

mas estão guardados na memória onde repousam as imagens

algumas fotografias perdidas sem palavras.

Os operários da rua Brejo Alegre

partiram num navio de esquecimentos

um mar de terra escura

como uma lápide e seus lamentos.

 

Quando eu era vivo percorria as ruas de uma cidade

repleta de igreja e hóstias sagradas

ao cantos de anjos tristes que dormiam na minha casa.

Gostava das ruas com nome de santos

porque andava a rezar como quem se esquece

assim em altares que não sei mais

no murmúrio da lágrima de uma prece.

 

2

 

Eu era um poeta parnasiano em 1902

quando comecei a conhecer a cidade em que me esqueço

como se me percorresse em mim mesmo

os becos das mulheres que me amaram, que desconheço.

 

Os operários das fábricas das construções das praças

o coração vermelho no fio de sangue a escorrer do lábio

um sabor de domingo ao entardecer

quando quase tudo se esconde

e São Bento se cala

monge que se morre em apelos

no canto vazio de uma sala.

 

Os rios também eram vermelhos

desse vermelho tão vermelho

que o vermelho não compreende

no corte da ferida aberta a palavra morta que não sabe

já que a boca não diz que nada é necessário

quando amanhecem as auroras em palcos perdidos

teatros de personagens que se afligem

em sílabas de ais nos poemas feridos.

 

3

 

Sou apenas um transeunte de ruas ausentes

apagadas de um mapa invisível

que ainda trago no bolso do casaco

aquele da Galeria Metrópole da guitarra elétrica

e de tantas mulheres que amei em desespero

no Copan onde residi com uma dor impossível de sentir

aquele delírio dos anjos expulsos

os que querem ficar naquela hora de se ir

faces que se perdem

no outro lado do espelho

um lugar no paraíso

com o grito mais vermelho

o que se apaga nesses becos

nada novo tudo velho.

 

Cidade de São Paulo de São Judas de São Francisco

Santa Maria Madalena Santa Rita de Cássia

Nossa Senhora de Fátima São José

As ruas de Álvares de Azevedo

pecados que ainda guardo como relíquia

esse Deus que me faz mastigar pecados

criaturas que saltam de mim das minhas ruas

praças que esqueci no meu nome

uma bolsa de estrelas cadentes minhas luas

a pressa de não viver num labirinto

o poema que se cala nas sílabas nuas

nas verdades da poesia em que minto

sílabas decoradas dez oito treze uma duas

e mais e mais e mais e mais que já não sinto

as mulheres que me habitam bailarinas do nada

esse homem quieto que se percorre e se delira

antigos poetas nos sobrados anoitecidos

que ainda acreditavam numa lira.

 

4

 

Angélicas ruas de antigas mulheres

de bocas vermelhas no esmalte de unhas longas

que no Arouche engoliam as floriculturas

mistura na memória das ladeiras

em que os sapatos se perdem dos destinos

que se vivem na busca da liberdade

assim queriam os operários da Brejo Alegre  

mas agora tudo é tarde.

 

5

 

Morreram-se em si

não resta nada

senão o que se tece no que se sente

o que se esquece no ausente o que entardece

na tarde que anoitece inclemente

o que nunca permanece no que se mente

calada palavra que se enaltece

no brejo das almas serpente que se padece

e no entanto amanhece

a manhã mais veemente que escurece

sonho demente

que nas horas desaparece no mais evidente

que enlouquece assim demente

que se aquece alma clemente

a tez tecida somente da lã que esvanece

o que é aparente no que se foge

o que aparece vagamente e se carece

a face que se oferece e se conhece

morta morta morta gente

o que não é mas acontece

não existem mais os operários da rua Brejo Alegre

engolidos calados ao passar dos anos

nos comícios mudos de promessas nulas

no sonho dos desenganos.

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Se pudesse estaria aí na casa das rodas...

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  3. Linda essa ideia de reunir os poetas que falaram sobre as ruas de São Paulo. ...

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  4. Caríssimo Poeta, eu nunca deixarei de dizer que sua poesia me salvou. Na verdade, ela ainda me salva, como o som da flauta que tocastes.

    Obrigado, Poeta!

    Um abraço!

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